quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Amores, rancores... mulheres e outros assuntos na hora da morte dos homens. Salvador, século XIX

     Procuro neste texto fazer algumas considerações a respeito da forma como as mulheres eram citadas no texto testamentário dos homens baianos no século XIX. É necessário, entretanto, fazer algumas observações iniciais. Não se trata de uma abordagem de gênero no escopo deste artigo. São leituras iniciais tematizadas a partir da ocorrência frequente nos testamentos. Foram analisados documentos que compreendem o período colonial oitocentista, avançando, porém, por todo o século. Na estrutura deste texto, os testamentos foram citados partindo de uma tematização que buscou seguir a padronização do texto documental e o teor das verbas testamentárias. Por esta razão, os trechos citados não acompanham uma ordem cronológica da feitura dos mesmos.

   A preocupação com a salvação da alma está presente na quase totalidade dos testamentos aqui estudados. Dois tipos de textos serviram para difundir condutas pautadas na perfeição cristã, que muito devem ter contribuído para inculcar os bons costumes ou despertar esta apreensão quanto aos destinos da alma. São os manuais de civilidade e as artes de bem morrer. Em estudo sobre a morte em Lisboa, Ana Cristina Araújo informa que os manuais de boa morte eram colocados a baixos preços no mercado, escritos quase sempre em língua vulgar, impressos em pequeno formato e de aparato gráfico simples, superando largamente, em quantidade, as versões portuguesas conhecidas de instruções ou tratados práticos de civilidade. Seu conteúdo, por sua vez, não difere substancialmente de outros guias práticos de comportamento, como bem destacou a autora do manual O Devoto Instruído na Vida e na Morte, de Manuel Maria Santíssima: “Se queres morrer bem, continua em bem viver; porque a boa vida é a melhor disposição para a boa morte”.[1]

   Estes manuais também circularam pela Bahia oitocentista, guiando muito dos nossos testadores. Tendo como parâmetro as condutas ditadas como corretas e garantidoras da salvação da alma, os testadores antecipavam-se ao julgamento final anunciado pela Igreja, realizando, no leito de morte, seu auto-julgamento. Vida e morte, culpa e medo encontravam-se na hora da feitura do testamento, fazendo brotar o passado - a ser julgado - e o futuro - o destino da alma. Revelavam-se os desvios de conduta, os excessos, os amores e rancores dos homens em relação às suas mulheres: esposas, companheiras, amantes, filhas, afilhadas, protegidas... As mulheres do século XIX também demonstravam, em seus testamentos, sentimentos semelhantes por seus homens. Este artigo, no entanto, tratará do que os homens falavam sobre suas mulheres e em que medida seus textos testamentários se relacionavam com os padrões de conduta ditados para as mulheres de então. 

Entre a morte e o Juízo Final: o julgamento de si... e dos outros. 

     Em setembro de 1820, o sargento-mor Custódio Gomes Mesquita, receoso de morrer intestado, ditou as disposições a serem cumpridas após sua morte. Declarando-se católico, e assim pretendendo ser até o último instante, o testador assumiu as faltas praticadas em vida, visando diminuir suas possíveis repercussões para além da morte. Por fraqueza humana, teve relações ilícitas com Antonia Fernandes da Costa, dela tendo um filho a quem criara e reconhecia como seu universal herdeiro. Suas palavras seguintes nos conduzem a um enredo curioso, onde, mais uma vez por fragilidade humana, revela outra relação ilícita. Que fale o próprio sargento: 

"Declaro que posto também tivesse relações ilícitas com uma parda de nome de  Leandra, de que me não lembro o sobrenome, [ ] emprenhou esta a esse [ ] uma filha a quem deu o nome de Maria Custódia e soube ela por sua [ ] de que eu era o pai, por estar então comigo [ ] chegando esta maneira a idade de quatro anos pouco mais ou menos, eu a recebi em minha casa e prestei-lhe desde então como aqueles socorros [ ] e carícias próprias de um verdadeiro pai; contudo esta constando já dezesseis a dezessete anos, deixou-se seduzir e deflorar emprenhando dentro de minha própria casa, facultei-lhe que dela e de minha companhia se saísse, pois que já não pertencia à minha família por ter-se pelo fato do defloramento desnaturalizado, logo depois deste tristíssimo acontecimento vim a ter exatíssimas razões para persuadir-me de que esta menina não tinha sido minha filha por que ao tempo da amizade ilícita com a Mãe esta tinha frequentíssimos ajuntamentos carnais com Bernardo dos Santos. Portanto não julgo [ ] a minha consciência e na não constituo esta Maria Custódia por herdeira de meus bens e muito [ ] pela defloração por cujo fato ainda que filha minha fosse se tinha desnaturalizado da minha família e jamais vinha a esta pertencer e nem podia exigir do meu herdeiro alimentos para efeito da Carta de Lei de dezenove de Junho de mil setecentos e setenta e cinco e [ ] de nove de Abril de mil setecentos e setenta e dois por todas estas coisas aquele de meu testamenteiro que aceitar este meu testamento defenda meu casal a custa desta e qualquer tentativa que seja por ela Maria Custódia feita para ou me suceder ou extrair alimentos"[2]     

Talvez Custódio Gomes Mesquita se questionasse quanto à Maria Custódia ser realmente sua filha e, na dúvida, resolveu reconhecê-la. Entretanto, o desgosto advindo do defloramento da filha por alguém que decerto não o agradava fez com que ele resolvesse transformar sua dúvida em certeza. O documento revela, também, o julgamento da conduta de outras pessoas, como da mãe de Maria Custódia, a parda Leandra. Na verdade, as falhas cometidas por Custódio são por ele justificadas como fruto da sua fragilidade humana. No entanto, o comportamento de sua suposta filha e o de sua mãe deveriam ser avaliados à luz dos padrões comportamentais exigidos para as mulheres no período. Deixar-se seduzir e deflorar eram motivos mais que suficientes para desnaturalizar uma filha, perdendo esta direitos [3] sucessórios relativos à herança. 
   Custódio não foi o único a apontar falhas alheias ao se preparar para a morte. Outros testadores expressaram seus dissabores diante de esposas e filhas. Este foi o caso de Bernardo Xavier de Castro, comerciante, casado com Alexandrina Maria da Trindade, de cujo consórcio tiveram três filhas, Luiza, Gertrudes e Alexandrina. Ao testar no dia 26 de maio de 1877, Bernardo não dissociou seus sucessivos infortúnios comerciais com os conflitos familiares. Com a palavra o próprio testador: 

"Declaro que nunca fui homem de fortuna e nem a pude fazer por mais diligência que empregasse; principalmente depois que casei-me com a finada senhora Alexandrina; porque se é possível acreditar-se que alguém venha ao mundo já com a miséria colada nas costas, eu devo afirmar que a tal senhora nasceu dotada de semelhante mal; e a razão que tenho de assim dizer é que, desde o princípio do meu casamento fui logo experimentando os reveses da fortuna ...,"[4]

       Bernardo Xavier de Castro prossegue nas suas lamentações, desta vez creditando a sua filha Luiza os motivos de ter sido chamado a responder a um libelo de divórcio perpétuo com separação dos bens, no dia três de novembro de 1855. Bastante atento às datas, Bernardo lembrou-se 22 anos após, quando da feitura do testamento, da data precisa em que esta sua filha deixou de morar em sua companhia – desde a tarde do dia 24 de junho de 1855: 

“A ausência dessa infeliz moça, deu lugar para que houvesse entre mim e minha mulher algumas desavenças e, em vingança das quais recorreu ela ao infame divórcio.” O testador não perde a chance de responsabilizar a esposa por mais este desgosto, pois o desmancho da sua filha Luiza deveu-se “a mesma mãe (que) com o seu desleixo muito contribuiu para a sua infelicidade no mundo, e para que qualidade de homem!...” 

     A leitura do testamento indica que Luiza havia fugido de casa na companhia de um namorado. Por conta deste romance, esta subtraiu-lhe 800$000 réis para dar ao Diabo, codinome dado pelo testador ao companheiro da filha. “Para pôr o mesmo Diabo acima dito fora da Bahia”, Bernardo gastou mais 4:000$000 réis. A questão do divórcio foi julgada improcedente, por falta de provas contra o testador, que convidou sua esposa para com ele coabitar novamente, conforme o acordo eclesiástico. Sobre isto, assim escreveu: 

"Conquanto minha mulher não acudisse ao meu chamado; todavia, nunca deixou de frequentar a minha casa e nela demorava-se o tempo que lhe aprazia estar: retirando-se depois por sua livre vontade ou antes por ser muito amiga de passear e por tal forma poder sem constrangimento tomar seus tragos de cujo vício procedeu a sua pronta morte que teve lugar na tarde de 24 de janeiro de 1873, isto foi 58 dias depois que veio para a fazenda e minha morada a fim de tratar-se de uma bronquite crônica e por conseguinte já desenganada."

    Ainda assim, Alexandrina foi sepultada com “a decência que permitia” a situação financeira do casal. A carga de rancor expressa no testamento de Bernardo Xavier de Castro demonstra que ele não suportou a convivência com duas mulheres que fugiram aos padrões de comportamento da época, seja através dos livres passeios, dos vícios, da bebida, do pedido de divórcio, do romance não consentido ou da recusa da esposa em voltar definitivamente ao lar. Mesmo assim, foi às mulheres da família que Bernardo recorreu como testamenteiras, na ordem em que foram citadas: à sua meia irmã Antônia Maria da Silva, à sua filha Gertrudes e à própria Luiza que, segundo o pai, “diz ser casada, se com efeito é ou deixa de ser ignoro.” 
    Relações familiares que não se enquadravam nos padrões eram comuns no século XIX, apesar da Igreja “fazer do matrimônio o único instrumento de legitimação dos filhos, consolidando assim o triunfo do modelo eclesiástico e da moral cristã econômica de satisfações físicas.”[5] Eram muitos os testadores que na hora da morte tornavam públicos relacionamentos de cunho ilícito, admitindo, inclusive, que poderiam ter legalizado tais relações, por serem as mulheres em questão, livres e desimpedidas. Este procedimento tinha como objetivo atenuar a culpa do testador, pois se envolver com mulheres casadas era um delito ainda mais grave, visto serem elas impedidas pelo matrimônio. Não apenas a Igreja legislou sobre tais relações, como outros códigos procuraram estipular normas e punições para aqueles que praticassem esse tipo de crime. As Ordenações Filipinas, por exemplo, legislação que vigorou para a maior parte do período colonial e por todo o Império, traziam em seu Livro V dois capítulos que tratavam destas questões, apresentando como punição desde a pena de morte ao degredo na África para os adúlteros. [6]
      A fragilidade humana, principal pretexto apresentado pelos testadores que não se uniram diante da lei, acometia também os membros da Igreja, que aproveitavam o momento da feitura dos testamentos para revelar seus relacionamentos amorosos. Assim fez o Reverendo José de Almeida Pacheco Ceslão ao escrever seu testamento em 6 de agosto de 1838: 

"Declaro que chamo para meus herdeiros necessários os três filhos da falecida parda Anna Maria da Saúde, chamados Antônio de Almeida Pacheco, Theodora Maria de Almeida, viúva de Leandro Soares de Azevedo, e Olava Maria de Almeida, casada com Manoel Antônio de Paula, os quais nasceram estando sua mãe morando comigo de portas dentro, e eu sempre os reconheci por meus filhos naturais sem suspeita alguma em contrário, os quais meus filhos nasceram tendo eu apenas os quatro graus de ordens menores.["7] 
No momento da confissão alguns padres aproveitavam 
para “abusar” sexualmente das mulheres.  
Gravura de Washt Rodrigues.
 O Rev. Ceslão parece demonstrar certa tranqüilidade ao escrever seu testamento, pois, apesar de ter vivido um casamento ilícito já como ingresso na instituição religiosa, seus filhos nasceram antes da sua ordenação. 
  Mas a preocupação em legalizar os relacionamentos também se mostrava na iminência da morte. Tratava-se não só de assumir o pecado, como de tentar remediá-lo. O africano Bernardo José testou em 15 de outubro de 1847, estando gravemente enfermo. Após encomendar sua atormentada alma, que desejava por no caminho da salvação, à Santíssima Trindade, à Virgem Maria Senhora Nossa, ao Anjo da Guarda e a todos os Santos e Santas da Corte Celestial, Bernardo declarou-se “até o presente solteiro, e se tiver tempo tenciono casar-me com Henriqueta natural do mesmo país Costa da África, a quem mo tem merecido”. Dificilmente conseguiu realizar tal intento, pois veio a falecer um dia após a feitura do testamento.[8] 
    O viúvo e também africano Malaquias Xavier de Castro, estando doente, mas em seu perfeito juízo, confessou em seu testamento, feito aos 29 dias do mês de setembro de 1855, ser “hoje casado pela segunda vez com a africana liberta Maria do Rosário, cujo casamento efetivei já estando de cama”. [9] Pensando ainda na condução de sua alma, Malaquias teve tempo de encomendar seu funeral à segunda esposa. 

Testamentos: espaço dos afetos e demonstração de confiança. 

    Embora as manifestações de amor e afeto fossem inscritas nas convenções da decência e do pudor - tornando-se o que Ana Cristina de Araújo denominou de sentimento mudo[10] - é possível detectar nos textos testamentários sua expressão, cujo exemplo maior eram os testamentos conjuntivos ou de mão comum. Apesar de proibidos, eram reconhecidos pelo costume no século XIX e, através deles, marido e mulher se instituíam reciprocamente como testamenteiros e herdeiros. 
    Em 19 de junho de 1809, Cosme de Almeida Lisboa e Clara Maria do Espírito Santo ditaram seu testamento comum. Todas as declarações e determinações constantes do testamento foram compartilhadas, desde os santos de devoção e pedido de intercessão pela salvação de suas almas até a forma e providências quanto aos enterramentos. Quanto ao funeral, assim declararam: 

"Quando qualquer de nos falecer será dado à sepultura o nosso corpo a eleição do que vivo ficar, com aqueles sufrágios e exéquias funerais que bem lhe parecer sem ser obrigado a mais do que for sua vontade, pois confiamos pela boa união em que temos vivido que cada um de nós fará pelo outro aquilo mesmo que quereria se fizesse a seu respeito."[11]

      O mesmo procedimento foi tomado por Antônio Paes de Resende e Maria Leocádia de Resende muitos anos depois, em 12 de fevereiro de 1896, quando se auto-instituíram testamenteiros e herdeiros, também compartilhando suas decisões quanto aos enterramentos.[12] A confiança entre os cônjuges não era exclusividade dos testamentos de mão comum, pois a grande maioria dos testadores casados indicava suas esposas como primeiras testamenteiras e executoras de suas últimas vontades, apesar de realizarem seus testamentos individualmente. Numa amostragem de 134 testamentos deixados por homens soteropolitanos do século XIX, 88 declararam a natureza da relação que tinham com seus testamenteiros e executores das disposições testamentárias. Dos 49 homens casados, 32 (65%) nomearam suas esposas como primeiras testamenteiras. De nove testadores que se declararam amancebados, cinco (55,5) indicaram suas companheiras para cumprirem seus testamentos. 
     O pernambucano Antônio Carvalho Câmara, morador da Soledade em Salvador, testou em abril de 1806, lembrando à sua esposa e testamenteira, na 5ª  verba do testamento, que o seu enterramento, pela confiança que lhe tinha, seria à sua eleição (da testamenteira), mas que este deveria ser “com a menor pompa possível”. Seria em nome desta mesma “confiança e zelo que sempre em sua esposa achara”, que esta faria seu corpo ser conduzido à sepultura pelos seus irmãos terceiros. Por duas vezes Antônio Câmara informa querer enterramento e demais celebrações com humildade e sem pompa. Porém, sua esposa dedicou-se com esmero ao preparar-lhe os funerais, o que se percebe pela análise dos recibos constantes do inventário dos bens do casal. Quarenta sacerdotes o acompanharam à Freguesia do Pilar, onde foi sepultado e, lá chegando, seu corpo amortalhado em hábito franciscano foi recebido por mais 20 sacerdotes. Cartas de convite foram distribuídas para assegurar grande número de pessoas no cortejo. Os sinos da Sé anunciaram seu passamento. Além do ofício fúnebre que lhe foi feito na Matriz do Pilar, acompanhado por um músico organista, mais 452 missas de corpo presente por sua alma foram celebradas em vários conventos e igrejas da cidade. Os gastos com seu enterramento alcançaram 419$520, superiores à sua terça, o que fez com que boa parte fosse desconsiderada dos valores a serem deduzidos do monte-mor do casal antes da partilha com os herdeiros[13]. O espetáculo da morte também servia para tornar público sentimentos de estima e consideração. 
   O capitão Manoel Joaquim d’Almeida, também natural de Pernambuco, declarou em seu testamento feito no dia 16 de outubro de 1854, que nunca se casara, mas no estado de solteiro em que se conservara e por fraqueza humana, tivera cinco filhos de diferentes africanas livres e libertas. Da sua última companheira, assim falou: 

"Declaro que a africana liberta Leopoldina que comigo reside e é mãe de meu filho Cândido tem alguns objetos que lhe pertencem assim móveis como ouro e prata, que com seus negócios tem adquirido e são exclusivamente de seu domínio e é tal a confiança que nela tenho que muito recomendo ao meu primeiro testamenteiro e tutor de meus cinco filhos que a deixe em paz, concedendo-lhe o que ela designar pertencer-lhe por que será com efeito seu por achá-la incapaz de se apropriar do que lhe não pertencer, e ele não ignora também".[14]

Dotes na terra, lotes no céu: doações piedosas e casamentos. 

   
REIS, Adriana Dantas. Cora: Lições de Comportamento 
Feminino na Bahia do Século XIX
Outra prática comum dos testadores era deixar registrado em suas verbas testamentárias doações às moças donzelas, para que estas pudessem constituir o dote necessário ao casamento. Desta maneira, além de angariar créditos na contabilidade celestial com estas doações pias, os testadores contribuíam para a manutenção do papel da mulher na sociedade de então. 
Em seu longo testamento ditado em dois de janeiro de 1807, Antonio de Seixas Portela declarou: 

"Declaro que depois de feito este meu testamento me lembra declarar o que agora faço a bem de minha alma e desencargo de minha consciência e é o seguinte: Deixo de esmola a Maria, filha de José Mathias Duraens para seu dote 100$000 réis que meu testamenteiro lhes dará logo que casar, e não se casando em cinco anos, meus testamenteiros transfiram o dito dote para outra qualquer moça donzela pobre que se case. Deixo mais 50$000 réis de esmola a duas moças donzelas Thereza e Joanna, irmãs de Joaquina da Cruz Silva Ferras, moradoras nesta vila, onde também mora a sobredita filha de José Mathias Duraens, os quais 50$000 réis tenha preferência a primeira das ditas duas irmãs que se casar". [15]

   O comerciante português Antonio Martins da Costa também destinou parte dos seus recursos para doações à instituições religiosas e moças solteiras. Assim determinou, em 26 de janeiro de 1809: 

"Deixo a cada uma das filhas do meu defunto compadre Francisco Fernandes Vieira Guimaraens que se achar solteira ao tempo do meu falecimento 300$000 réis. A cada uma das filhas do defunto Veríssimo Ferreira da Rocha que ainda estiverem solteiras ao tempo do meu falecimento deixo 200$000 réis. À minha afilhada filha de Antonio Ventura e de sua mulher deixo também 400$000 réis se também estiver solteira ao tempo do meu falecimento. Declaro que os três legados acima deixo para que as legatárias tomem o estado que escolherem. A cada uma das filhas do meu advogado Dr. Thomas da Costa Ferreira que se acharem solteiras ao tempo do meu falecimento para ajuda de tomarem estado deixo 200$000 réis".[16]

PRIORE, Mary Del.  Mulheres no Brasil colonial 
A mulher no imaginário social, mãe e mulher, 
honra e desordem, religiosidade e sexualidade
   Martins da Costa não destinou recursos apenas para os dotes de filhas de seus conhecidos tomarem estado de casadas. Dedicou mais uma verba do seu extenso testamento para deixar a dez moças pobres e solteiras residentes em Salvador o dote de 400$000 réis a cada uma, a arbítrio do seu testamenteiro, mas de preferência que residissem na sua freguesia. A outras 50 moças que fossem pobres órfãs ou pobres viúvas, deixou 2:500$000 réis a serem repartidos igualmente, sem condicionar as quantias ao dote para o casamento. 
     Maximiano José de Oliveira foi mais exigente, pois além de designar, em 16 de novembro de 1811, dois dotes de 100$000 réis, suas beneficiárias deveriam ser “moças pobres brancas, filhas de legítimo matrimônio, uma da Freguesia onde fui batizado e outra da Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo...”. [17] Para ele, importava não só a origem das moças, como também as associava ao local onde recebera o primeiro sacramento como cristão e à sua última morada, no caso a freguesia de sua residência. Relacionara, portanto, dois instantes da sua vida: o nascimento como cristão através do batismo e a passagem para a vida extraterrena, ambos simbolicamente marcados pelas doações. 

     Já José Pereira Vianna, morador à Ladeira de São Bento, concedeu à sua esposa, em 15 de março de 1845, “o arbítrio de fazer depois, quando mais proporcionada parecer-lhe, duas esmolas de 100$000 réis cada uma, a duas pessoas pobres e honestas do seu mesmo sexo, e mais particular afeição, que ela vir as merecem”. [18]
RIBEIRO,  Arilda Inês Miranda. 
A Educação da mulher no Brasil-Colônia
As receptoras dos dotes, sobretudo as anônimas, deveriam ser solteiras e atender a outros quesitos como: serem brancas, filhas de casamentos legítimos, pobres e honestas. Há referências diretas ao estado de donzelice e virgindade como pré-requisito para a recepção do benefício. No caso das viúvas honestas, estas de alguma forma recuperavam seu estado de virgindade, pois as penas previstas nos capítulos 22 e 23 do Livro V das Ordenações Filipinas para os que atentassem contra a honestidade das viúvas eram equivalentes aos que violassem as mulheres virgens.
[19] Domingos Gomes Bello, no extenso testamento escrito de próprio punho em 21 de janeiro de 1856 também destinou doações a serem distribuídas após sua morte, mas estas, no valor de 250$000 réis, teriam que beneficiar 50 viúvas e órfãs pobres residentes em seu local de nascimento. Em outra verba testamentária, porém, o testador mostra-se menos rigoroso quanto aos destinos de outra doação: 

"Deixo 500$000 réis para serem distribuídos por 50 mulheres pobres, domiciliadas na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Praia, dando-se a cada uma delas 10$000 réis, atendendo na distribuição a pobreza somente, e não a boa ou má conduta das que houverem de concorrer: esta distribuição será feita pelo meu testamenteiro de acordo com o Reverendo Vigário da freguesia, como mais conhecedor das precisões de seus paroquianos." [20]

   O mais comum, entretanto, era exigir que tais doações se constituíssem em dotes, pois cabia às mulheres assumir o estado de esposa, a que a “destinara a natureza”. Nas palavras de Lino Coutinho, destinadas a preparar sua filha Cora para o casamento, este era “necessário à mulher, pela fraqueza de seus órgãos e também por certo grau de insuficiência para poder viver por si só e independente.”[21]

Considerações  

   Embora a legislação eclesiástica tentasse conduzir os fieis a uma vida regrada e devota, predominava certo relaxamento quanto à observância de alguns padrões de comportamento, sobretudo no que dizia respeito aos homens. Embora os testamentos de mulheres não tenham sido incluídos neste artigo, a leitura de alguns deles indica não se ocuparem as testadoras em analisar comportamentos masculinos à luz de padrões de conduta. Estas só julgavam as ações dos seus homens quando eram individual e diretamente envolvidas. 
   
PRIORE, Mary Del.  Ao sul do corpo - 
Condição feminina, maternidades e mentalidades 
no Brasil colônia
Pela forma como a sociedade se estruturara, cabia ao homem a resolução, ou não, de algumas questões como o reconhecimento de filhos naturais e a legalização de uniões consideradas ilícitas. Os textos que orientavam os cristãos nos assuntos da vida e da morte contemplavam regras para os maridos, como não olhar para outra mulher mesmo sendo sua esposa feia e torpe. Deveria conformar-se com a vontade de sua mulher, sem a desprezar nunca para não lhe servir de exemplo; o governo da casa deveria ser a ela concedido e suas faltas desculpadas com descrição. Às mulheres, por sua vez, cabia observar: 

"Se o marido for vicioso, jogador, amancebado, zeloso, indiscreto e arremeçado [...], deve servi-lo como senhor e cabeça da família, cuidando da sua honra, pessoa e regalo, mais que do seu gosto próprio [...]; deve sofrer os agravos que o marido lhe fizer como se fora insensível, sem apartar cama e mesa. Porque se a mulher não souber sofrer também não saberá agradar nem mandar. [...] Não se queixe dos maus tratamentos de seu marido [...], basta que o faça ao confessor para a consolar. [...] E se ele tiver filhos de outra mulher procure que se criem com todo cuidado [...] Fora do governo da casa não faça a mulher nada sem licença do marido, porque o corpo da família deve ser regido pela sua cabeça.[...] Não tenha amizade familiar com nenhum homem, ainda que seja parente, nem permita que a visite em secreto, nem lhe aceite nada sem que o marido o saiba. Não acompanhe com mulheres de má fama".[22]

     Logo, destinadas a ocupar o espaço privado, estas eram orientadas a não exercer controle sobre seus homens, cuja esfera de ação era a vida pública. Estes, porém, revelavam em seus testamentos expressões deste modelo de sociedade, cujos manuais de civilidade e de regras para uma boa morte eram fruto de uma experiência masculina de apreensão do mundo. Talvez por isso os homens fossem mais incisivos ao apontar reprováveis comportamentos femininos, até mesmo porque estas eram orientadas, como indica o trecho acima destacado, a aceitar os desvios masculinos. Este modelo era reproduzido a partir das doações testamentárias destinadas aos dotes de casamento. Os testadores garantiam conquistas para suas almas, ao tempo em que, mesmo mortos, continuavam a cuidar dos papéis reservados às mulheres. Muitos, é certo, encontraram mulheres dispostas a driblar os padrões, o que se percebe pelo número de relações consideradas ilícitas. Estas existiam porque, de certa maneira, eram consentidas pelas mulheres envolvidas. É certo, como já foi lembrado, que cabia ao homem a legalização de tal situação. Entretanto, os testamentos também mostraram que os homens eram mais contidos na manifestação dos afetos que ao denunciar os comportamentos considerados desviantes. Os homens testadores nos legaram evidências de que nem sempre as mulheres se permitiam enquadrar 

[1] ARAÚJO, Ana Cristina. A esfera pública da vida privada: a família nas artes de bem morrer. Revista Portuguesa de História, t.XXXI, Vol. 2 (1996). p. 343. 
[2] Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Seção Judiciária ¾ Série Testamentos e Inventários. Doc. 04/1748/2218/01. Os colchetes indicam trechos da documentação que estão danificados. 
[3] Questões como sucessão e posição dos filhos naturais em relação aos demais herdeiros obrigatórios são analisadas por Kátia de Queirós Mattoso, no 2o capítulo de Família e Sociedade na Bahia do Século XIX. São Paulo: Corrupio, 1988. 
[4] APEB, Seção Judiciária, Doc. 7/2891/22. Grifo meu. 
[5] DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo. Condições femininas maternidades e mentalidades no Brasil colônia. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1995. p. 54. A esse respeito, ver também a já citada obra de MATTOSO, Kátia de Queirós. Família e Sociedade na Bahia do Século XIX. São Paulo: Corrupio, 1988. 
[6] ORDENAÇÕES FILIPINAS: livro V. Sílvia H. Lara (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 117-25. 
[7] APEB, Seção Judiciária ¾ Livro de Registro de Testamento (LRT) n° 26, fls 82v. 
[8] APEB, Seção Judiciária, LRT nº 33, fls 101v. 
[9] APEB, Seção Judiciária, doc 03/1343/1812/35. 
[10] ARAÚJO, Ana Cristina de. Morte edificante e vida inquieta¾ a disciplina dos afetos nas ars moriendi e nos testamentos. Revista de História das Idéias. Coimbra: Universidade de Coimbra, Janeiro-Dezembro de 1994. p. 102. 
[11] APEB, Judiciária RLT n° 3, fls 45. 
[12] APEB, Judiciária Doc. 01/108/164/02. 
[13] APEB, Seção Judiciária, doc. 04/1771/2241/01. 
[14] APEB, Seção Judiciária, doc. 05/2191/2660/38. 
[15] APEB, Seção Judiciária, doc. 04/1771/2241/07. 
[16] APEB, Seção Judiciária, LRT nº 03, fls. 18. 
[17] APEB, Seção Judiciária, LRT nº 03, fls 14. 
[18] APEB, Seção Judiciária, LRT nº 32, fls 13v. 
[19] Ver ORDENAÇÕES FILIPINAS: livro V. Sílvia H. Lara (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1999. pp 111-115. 
[20] APEB, Seção Judiciária, doc. 07/3001/08. 
[21] REIS, Adriana Dantas. Cora: lições de comportamento feminino na Bahia do século XIX. Salvador: FCJA; Centro de Estudos Baianos da UFBA. P. 175. 
[22] Apud ARAÚJO, Ana Cristina. A esfera pública da vida privada. Revista portuguesa de História. T. XXXI, Vol. 2, 1996. p. 344-45. A autora destaca pontos do manual de João Franco, intitulado Mestre da Virtude renovado, segunda parte do Mestre da Vida, que persuade a todas as criaturas de qualquer estado, que sejão, o que he necessário para se salvarem.

2 comentários:

  1. Poxa Adriana esse tema e seu recorte temporal requer mesmo paciência e muita leitura.Essa semana eu ouvi falar do livro A morte é uma festa.eu tenho a ainda li.
    Mas é interessante.

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  2. Olá, Roosevelt. A identificação com o tema fez com que eu desenvolvesse a "paciência" necessária. Recomendo a leitura do livro de João J. reis, A morte é uma festa. Há uma resenha publicada no blog. Abraços e obrigada.

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